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A Cuchita da discórdia

A Cuchita da discórdia

José Fernandes Parece até que eu já sabia que alguma desgraça estava para se abater sobre mim, pois desde o princípio me recusei terminantemente acompanhar aquelas pessoas que passaram mais de uma hora levando quedas a torto e a direito no meio do mato correndo atrás de mim até conseguirem me segurar e só me levaram amarrada, durante todo o trajeto fui gritando, berrando, chorando, mas insensíveis aos lamentos, meus algozes me arrastaram. Manietada, cheguei arrastada até o local depois do meio dia, com os pulsos sangrando em decorrência da corda que me prendia. Ao chegar a sessão de tortura psicológica foi terrível, talvez pior que o desfecho dos acontecimentos. Apesar de meus gritos, súplicas e protestos fui implacavelmente amarrada em uma mangueira centenária, enquanto que eles faziam fogueira, amolavam facas, nem sequer me olharam para ver se eu estava bem. Quando vi que um deles se aproximava de mim com uma lata de água imaginei que fosse para aplacar minha imensurável sede, já que durante todo o percurso que durou mais de uma hora de caminhada forçada debaixo de um sol inclemente e até aquele momento não tinha tomado uma única gota e em decorrência de meu permanente lamento e protestos estava com a garganta super seca, ledo engano, a vasilha foi posta ao fogo. Eu continuava amarrada ao tronco da majestosa árvore berrando sem parar, com a goela já sangrando, tentando sensibiliza-los, porém, inflexíveis, permaneciam ouvindo músicas, bebendo e rindo de coisas sem graça alguma que de vez em quando alguém dizia. Estremeci de pavor quando escutei nitidamente um deles dizer, após meter o dedo indicador dentro da lata que estava no fogo, que já era o momento de matar-me, pois a água estava começando a ferver. Pensei comigo mesma, será que vão ter coragem de assassinar-me com este líquido em ebulição? A realidade mostrou-se bem pior, aos poucos fui tomando conhecimento que depois de morta pretendiam comer minhas carnes como churrascos, feitos tira-gostos. Neste instante, sabendo que para mim o fim chegara e que não me restava mais nenhum recurso para sensibilizar aqueles corações alcoolizados e demove-los do mal que intentavam contra mim, prostrei-me ao chão e chorando joguei uma maldição, para que aquela carne que seria devorada numa bebedeira se transformasse em discórdia e contenda entre eles, prometendo-me que meu espírito só descansaria em paz depois de vingar-me completamente e de minha história vir a público narrada por um deles, que apesar de não participar de minha tortura e assassinato, pagou para comer-me também. Finalmente me desamarram da mangueira, arrastaram-me e colocaram-me no meio do circulo, começando, assim, o suplício final, para mim são todos iguais, naquele instante estava tão desesperada que não consegui gravar fisionomia de ninguém, só sei dizer que um deles pegou um pedaço de tarugo e caceteou-me com toda força na cabeça, levando-me imediatamente atordoada ao chão frio recoberto por uma fina camada de mato, no mesmo instante outro enfiou toda lâmina de uma peixeira em meu peito, acertando em cheio meu coração, minha morte foi praticamente instantânea, salvo alguns instantes em que nos estertores, vi meu sangue jorrando, encharcando o solo, como se fosse uma torneira aberta, sujando meus matadores. Colocaram meu corpo em um tablado, como se fosse numa mesa e de posse de facas começaram a pelar-me, jogando água fervente em cima de mim para amolecer os pelos e facilitar o serviço. Feito isto, fui aberta e eviscerada, minhas entranhas foram jogadas para os cães e meu corpo dividido em duas bandas e logo em seguida esquartejado, porém, deste instante em diante minha maldição começou a ser cumprida e minha vingança dava os primeiros passos. Um deles, dono do veículo que transportou a galera, como se diz atualmente, para este fatídico passeio, tirou meu espinhaço dizendo que serviria de tempero de feijão em sua residência, outro que recepcionava a turma na casa de seu genitor, postou-se entre meu corpo e os convidados dizendo que só provaria de minhas carnes aqueles que pagassem, como o cara do carro e o narrador de minhas memórias póstumas opuseram-se, o anfitrião declarou que arcaria com as despesas, mas que ninguém provaria um naco de meu corpo inerte e que sozinho comer-me-ia, por alguns instantes fiquei felicíssima, já que gorda, ele teria uma indigestão e uma grande e duradoura diarréia. Após a recusa de fazer-se coleta para pagar por meu corpo, acirrou-se a discórdia, descambando a discussão para a baixaria, com acusações pesadas entre eles sobre quem poderia beber cerveja ou cachaça, quem as teria comprado, no entanto, para meu desapontamento, o proprietário do veículo, como se não fosse consigo, continuou bebericando e retalhando-me, já o tal de Peter Pan, que também havia contribuído para a compra das espumosas, parou de beber, fato este que deixou meu espírito contente, uma vez que a discórdia estava gerando efeito na turma. Após um bom espaço de tempo e muitas ofensas de parte a parte, já por volta das 4 horas da tarde, nestas alturas a namorada do cara do carro que tinha parado de beber cerveja depois dos primeiros xavecos e passado a degustar vinho, tinha tomado as dores do namorado e defendia-o ferrenhamente. Tentando dar um basta na confusão que me dava prazer enorme, o escritor de minha desdita pagou por um dos meus quartos e o outro foi pago pelo dono do auto, por seu turno o anfitrião declarou solenemente que não provaria um tiquinho de mim, porém, de coração mole, depois de assarem-me, foi o primeiro a encher, pelo menos, dois pratos com churrasco para bebericar na beira do rio em companhia de novos amigos. Mesmo depois de diversas tentativas de apaziguamento, para meu deleite vingativo, a discussão corria solta, envolvendo inclusive a mãe do anfitrião. Cada palavra da briga, cada gesto da baixaria, deixava meu espírito leve, felicíssimo. A volta, há! A volta, foi magnífica, representou o auge de minha vingança, saindo além do que imaginara a princípio, imagine só a galera toda dentro de uma camioneta discutindo, 13 pessoas (número soberbo, ideal de minha vingança) entre crianças e adultos, que zorra, meu espírito se comprazia com aquele desentendimento geral entre os amigos de farra. O momento culminante foi quando a turma parou para que os bebedores discutissem mais à vontade num bar na beira de um rio sobre quem teria direito de beber cerveja e quem deveria tomar cachaça, quem devia favores a quem, quem teria sido humilhado, de repente o escritor de minhas tristes memórias interpõe-se entre a namorada do dono do carro e o anfitrião que discutiam acaloradamente a menos de três dedos um da cara do outro, para tentar acabar com a contenda. Neste momento mágico em que estava saboreando minha vingança quentinha, estremeci de prazer, como se estivesse acabado de fazer amor, melhor ainda, ao antever que um dos dois daria pelo menos um tapa no pé do ouvido do interventor, mas ele, quem sabe o que se passou por sua cabeça encharcada de espumosa, decidiu abandonar o tatame, indo para o rio tomar banho e tirar a água do joelho, no que foi imitado pelo fulano do veículo que estava quase delmindo à peso de louras geladas. Ele que desde o começo foi uma das peças principais da contenda, apesar de meus esforços para que se manifestasse, permanecia calado como se nada daquilo dissesse-lhe respeito. Como nem todos entraram em atrito, continuo aguardando que os trezes amigos reúnam-se novamente para completar minha vingança e só assim meu espírito poderá descansar em paz no céu dos cuchitos. Advogado e Jornalista